“Diante de tanta desconexão emocional, percebemos que a verdadeira felicidade não está no excesso de estímulos, mas na profundidade dos encontros”.

Dra. Milene Zanoni (arquivo pessoal)

Um pouco sobre a Dra. Milene Zanoni!

Em comemoração ao Dia Internacional da Felicidade (20.03), a One Way conversou com uma especialista no assunto. Dra. Milene Zanoni, mãe dos pequenos Felipe, Julia e Henrique (que moram no céu), da Gabriely, 12, e do Eduardo, 5, é entusiasta do tema desde criança, e há 15 anos se dedica a esse estudo.

Doutora em Saúde Coletiva, professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), coordenadora do primeiro curso de bacharelado em Naturologia em universidade pública no Brasil, chefe do Ambulatório de Saúde Integrativa da UEPG e da especialização em TCI também na UEPG.

Atualmente, é Presidenta da Associação Brasileira de Terapia Comunitária Integrativa (ABRATECOM), que foi reconhecida pela Fundação Banco do Brasil como uma das cinco melhores Tecnologias Sociais do país, em 2024. Atua como pesquisadora, escritora, palestrante e terapeuta comunitária, com forte presença em redes nacionais e internacionais de promoção da saúde, bem-estar e espiritualidade.

Compõe o comitê de Saúde Mental e Espiritualidade do Consórcio Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa e é titular na Comissão Intersetorial de Promoção da Saúde e PICS do Conselho Nacional de Saúde. É consultora da Organização Pan-Americana da Saúde/OMS, contribuindo na sistematização da Terapia Comunitária Integrativa como prática de autocuidado e saúde mental para o Brasil e Mundo.

Farmacêutica, percebeu que a tal felicidade não se acha em caixinhas de remédio. E, nesse bate-papo, ela compartilha conosco seus conhecimentos, reflexões e experiências sobre a busca pela felicidade!


1. O que a motivou a pesquisar sobre felicidade?

Desde muito nova, eu já me interessava pelo tema da felicidade, emoções positivas, bem-estar e espiritualidade. Com 9 ou 10 anos, escrevia frases que me tocavam na porta do armário do meu quarto. Era como se, intuitivamente, eu já buscasse compreender o que dava sentido à vida.

Quando entrei na universidade para cursar Farmácia, senti um certo desconforto ao ver que o foco estava quase sempre na doença, na dimensão biológica do ser humano. Tudo era muito técnico, muito reducionista. E eu me perguntava: “Mas e o que faz as pessoas viverem bem? O que protege alguém de adoecer? E se a pessoa adoece, o que a ajuda a melhorar mais rápido?”.

No doutorado, pude investigar esses questionamentos. Meu orientador era muito aberto e aceitou que eu estudasse o impacto das emoções positivas – como a felicidade, o amor e o bom humor – no controle de doenças crônicas, como depressão, ansiedade, dor crônica, hipertensão e diabetes.

Foi uma descoberta maravilhosa! Me encontrei nessa área e, desde então, já se passaram 15 anos nessa jornada de pesquisa, prática e aprendizado.

Quero continuar buscando as ‘pílulas invisíveis’ que curam a alma e o corpo – e, acima de tudo, inspirar outras pessoas a encontrarem sua alegria de viver, seu propósito e sua própria cura.

2. Atualmente, a senhora está cursando uma graduação específica sobre felicidade?

Sim. Hoje, além de pesquisadora e terapeuta comunitária, estou me formando no curso de graduação em Tecnologia da Ciência da Felicidade. Sigo aprendendo todos os dias, porque acredito que o conhecimento tem o poder de transformar vidas.

3. Somos seres criados para a vida social. O isolamento é reflexo de uma infelicidade?

Como pesquisadora, posso afirmar que há uma relação de mão dupla entre isolamento e infelicidade. Pessoas mais infelizes tendem a se isolar, e o isolamento prolongado pode, por sua vez, gerar ou intensificar infelicidade, sentimentos de tristeza e desesperança.

"Pessoas mais infelizes tendem a se isolar, e o isolamento prolongado pode, por sua vez, gerar ou intensificar infelicidade, sentimentos de tristeza e desesperança".

A ciência mostra com clareza que relações sociais positivas estão entre os principais preditores de bem-estar e longevidade.

Um estudo clássico, o Harvard Study of Adult Development, iniciado em 1938 e liderado atualmente por Robert Waldinger, conclui que vínculos sociais profundos são um dos fatores mais importantes para uma vida longa e feliz - mais até do que genética, classe social ou hábitos alimentares.

Mas não se trata apenas da quantidade de relações, e sim da qualidade emocional dos vínculos. Como mostra uma meta-análise conduzida por Diener & Seligman (2002), no artigo "Very Happy People", publicado na Psychological Science, as pessoas mais felizes são consistentemente aquelas com relacionamentos interpessoais mais fortes e íntimos.

A felicidade, nesse caso, não é apenas um efeito, mas também pode ser causa: pessoas felizes tendem a ser mais sociáveis, empáticas e conectadas - que retroalimenta o ciclo positivo das relações.

Vivemos uma contradição moderna. Nunca estivemos tão conectados digitalmente, e ao mesmo tempo, tão sós. Hoje, uma parcela significativa da população relata não ter com quem conversar, dividir alegrias ou simplesmente receber um abraço.

A Organização Mundial da Saúde já reconhece a solidão como um desafio de saúde pública, e estudos recentes apontam que ela está associada ao aumento do risco de depressão, ansiedade, doenças cardiovasculares e até mortalidade precoce.
"Nunca estivemos tão conectados digitalmente, e ao mesmo tempo, tão sós".

Esse cenário nos convida a refletir: o que realmente importa quando pensamos em uma vida plena e feliz? Diante de tanta desconexão emocional, percebemos que a verdadeira felicidade não está no excesso de estímulos, mas na profundidade dos encontros. Ela se constrói no olhar que acolhe, na escuta que conforta, no vínculo que sustenta.

Felicidade, portanto, passa também por uma escolha consciente de presença, de vínculo e de simplicidade. É sobre resgatar o valor das pequenas conexões do cotidiano e lembrar que ninguém floresce sozinho.

"(...) ninguém floresce sozinho".

4. O Brasil é um dos países mais conectados do mundo, principalmente nas redes sociais, e também tem altos índices de pessoas com depressão e ansiedade. Essa hiperconexão tem relação com o aumento dessas doenças?

Sim. Mas é importante destacar que o problema não é a tecnologia em si, e sim o modo como nos relacionamos com ela. As redes sociais podem ser ferramentas incríveis de conexão e informação, mas têm se transformado, muitas vezes, em vitrines de comparação, cobrança e aparências irreais de felicidade.

Além disso, quanto mais tempo investimos em conexões virtuais superficiais, menos cultivamos vínculos reais, profundos e significativos - justamente aqueles que a ciência aponta como essenciais para o bem-estar.

É como se estivéssemos cercados de gente, mas nos sentindo cada vez mais sós.

A busca por curtidas, aprovação e validação constante alimenta um ciclo de ansiedade e esvaziamento emocional.

5. Como mencionado, nosso país tem muitas pessoas com depressão ou ansiedade. No entanto, o Brasil é conhecido por sua alegria, suas festas. Isso não é antagônico?

De fato, o Brasil é internacionalmente reconhecido por sua cultura vibrante, suas festas populares como o Carnaval e o São João, seu povo caloroso e extrovertido. Mas é também um dos países com os maiores índices de depressão e ansiedade no mundo. Esse aparente paradoxo nos convida a perguntar: de que tipo de felicidade estamos falando?

A ciência que estuda a felicidade costuma distinguir dois grandes caminhos: a felicidade hedonista e a felicidade eudaimônica.

A abordagem hedonista entende a felicidade como a busca do prazer imediato, da alegria, da diversão, e da evitação da dor.

Já a abordagem eudaimônica, baseada em Aristóteles, valoriza a realização pessoal, o propósito de vida, a conexão com os outros e a vivência de uma existência com sentido - mesmo diante dos sofrimentos.

Quando pensamos no Brasil como um país "feliz", geralmente nos referimos à felicidade hedonista: festas, risadas, música, danças. Pelo contrário, temos enormes desafios sociais, sanitários, econômicos e políticos, que impactam diretamente na saúde mental da população. E, muitas vezes, a cultura da aparência, do "estar sempre bem", do "viver sorrindo" reforça o silenciamento das dores - como se a tristeza e o sofrimento fossem fracassos pessoais.

A sociedade está cada vez mais influenciada pelo modelo materialista, capitalista e neoliberal, que impõe uma pressão por uma felicidade constante, rápida e superficial - muitas vezes inalcançável. Isso gera frustração, culpa, isolamento e desconexão.

A questão é como lidamos, enquanto sociedade, com o sofrimento. Acolhemos a dor, o luto, a vulnerabilidade? Ou tentamos escondê-los atrás de filtros, festas e sorrisos?

6. Diante de tantos desafios, enquanto sociedade, estamos vivendo ou apenas sobrevivendo?

Na minha percepção, a maior parte das pessoas, hoje, está apenas sobrevivendo. Acompanhando de perto diferentes contextos — como os profissionais da saúde e da educação, famílias e comunidades — vejo o quanto as pessoas têm adoecido de forma intensa, silenciosa e contínua. Estamos enfrentando um cansaço que não é apenas físico, mas emocional, afetivo e existencial.

A rotina acelerada, a pressão por produtividade, as dores não elaboradas da pandemia, os lutos não vividos, o excesso de informações e a escassez de tempo de qualidade estão nos afastando daquilo que é essencial para uma vida com sentido.

Muitos estão vivendo no “modo automático”, cumprindo tarefas, tentando dar conta, mas sem presença, sem prazer, sem propósito.

Um exemplo do tamanho da loucura coletiva em que vivemos é que uma pesquisa recente revelou que 1 em cada 4 jovens adultos prefere se relacionar com inteligências artificiais do que com pessoas reais.

Paralelamente, enfrentamos desafios sociais significativos, como o aumento das taxas de violência doméstica, desastres ambientais, conflitos armados e suicídios.

São situações que ressaltam a complexidade das interações humanas na era digital e a necessidade de abordagens integradas para promover o bem-estar emocional e social.

1 em cada 4 jovens adultos prefere se relacionar com inteligências artificiais do que com pessoas reais.

7. Em uma de suas palestras, a senhora disse a seguinte frase: "Existem remédios que a farmácia não vende. São as pílulas da felicidade e elas moram dentro de você". VOCÊ, nesse caso, se tornou um acrônimo. Explique, por gentileza, o que significa cada letra.

Com mais de 20 anos de trajetória entre pesquisas científicas, vivências profissionais e, principalmente, experiências pessoais marcadas por perdas, frustrações e recomeços, fui reunindo aprendizados, escutas e reflexões que me conduziram a uma compreensão mais profunda sobre o que realmente sustenta a saúde mental.

Desse caminho, nasceu o Método Saúde Mental VOCÊ — uma proposta prática e estruturada, centrada no ser humano como protagonista da própria cura.

Esse método é fruto da união entre ciência, afeto e prática. Ele não é apenas teoria: é vivência. É corpo, alma, comunidade e propósito integrados em experiências reais, possíveis e transformadoras.

O objetivo do Método VOCÊ é propor e vivenciar experiências terapêuticas que contribuam para o fortalecimento da saúde mental, a partir do despertar de emoções positivas e do resgate do sentido de vida.

O nome "VOCÊ" é também um acrônimo que revela os quatro pilares essenciais para o florescimento humano:

V de Vulnerabilidade, como a capacidade de reconhecer e acolher as emoções, respeitar os próprios limites e permitir-se sentir.

O de Ousadia e Coragem, para sair da zona de conforto, fazer escolhas autênticas e trilhar caminhos com propósito, mesmo diante do medo.

C de Conexões, lembrando que ninguém floresce sozinho e que vínculos verdadeiros são parte fundamental da cura.

Ê de Êxito com Propósito, porque viver com sentido é mais importante do que simplesmente conquistar metas — é alinhar o fazer com o ser.

Cada uma dessas dimensões é trabalhada por meio de vivências individuais e coletivas, que promovem escuta ativa, pertencimento, autoconsciência e ação transformadora.

Para alcançar esses objetivos, utilizo ferramentas terapêuticas que dialogam com diferentes dimensões do ser: técnicas de resgate da autoestima, práticas de autocuidado, dinâmicas participativas e, com destaque, as rodas de Terapia Comunitária Integrativa (TCI) — um espaço potente de acolhimento, partilha e construção coletiva de sentidos.

O Método VOCÊ pode ser aplicado em diversos contextos: escolas, universidades, comunidades, serviços de saúde, empresas ou em grupos terapêuticos.

Ele é simples, acessível e profundamente transformador — porque acredita que a felicidade e a saúde emocional não estão fora, mas dentro de VOCÊ.

8. Afinal, o que é felicidade? E, como saber se eu sou uma pessoa feliz?

Felicidade não é um lugar de chegada, nem um estado permanente. Ela é uma autopercepção, uma sensação íntima e pessoal de que, mesmo com todos os altos e baixos da vida, há algo em mim que pulsa sentido, gratidão e alegria por estar viva.

Não é algo que alguém possa definir por você. Ninguém pode te dizer se você é feliz ou não — porque a resposta está, e sempre estará, dentro de VOCÊ.

Felicidade não significa ausência de dor, de conflitos ou de lutas. Ela pode, sim, coexistir com desafios, com cansaço, com dúvidas. É, muitas vezes, silenciosa, discreta, feita de pequenos instantes em que você sente que está sendo fiel a quem é, que está vivendo com verdade, com propósito e com afeto.

Então, se você me perguntar o que é felicidade, eu devolvo com outra pergunta:

Você se percebe feliz, mesmo com todos os desafios que a vida lhe impõe?

@milene_zanoni

Sites relacionados

Página da ONU sobre o Dia Internacional da Felicidade